sábado, 9 de abril de 2011

Ruínas (O derradeiro morador)


O coração já não nutria catedrais faustosas. Percebiam-se, esmaecendo ao peso dos anos, apenas capelinhas cadavéricas. Escombrosos resquícios de fazendas ancestrais jaziam como incrustações lúgubres nos carcomidos ramos coronários. A margem das estradas da mente, cruzinhas. Pequenos obeliscos em memória dos esqueletos de família. Esculturas infra-humanas embranquecidas pelo tempo. Sacos e sacos de ossos descarnados, descalcificando-se a olhos vistos, ocupavam os porões reais. Os escaninhos da mente, também porões, há muito não eram visitados, ao menos em sã consciência.

Já fora a época da casa-grande, das festas, da opulência, da mesa larga, dos festins. Chegara, enfim. o outono, as vésperas invernais. Agora, o homem mantinha-se teimosamente à margem. Havia fome, decadência. Preso irremediavelmente a casa fantasmagórica tentava, dia após dia, erguer-se do trono puído e deambular pela casa. A cada tentativa mais se assemelhava aos esqueletos recorrentes da ficção infanto-juvenil. Zumbi andrajoso que causava asco, receio, temor.

Já não olhava a rua. Há tempos desistira da sombra amiga das tamarineiras e do envoltório das brisas de fim de tarde. Os olhos sombrios buscavam o nada. Algumas vezes uma gargalhada roufenha rasgava o ar; lá fora a ouviam. Os miúdos da vizinhança tremiam. Noutras vezes um gemido gutural vindo deus sabe lá de onde arrepiava os cabelos dos moleques. Os pais contavam histórias terríveis dos dias passados daquela porção de terra mascava e escombros. Os meninos temiam o castelo decadente; além dele, temiam o homem, a lenda... o fantasma.

A mansarda causava medo e era imã para pedras-bala. Ao incompreensível, ao estranho, ao que dá medo, o homem responde com pedras. É a lei. O telhado ruía aos poucos. Caibros corroídos pelos cupins pendiam, rasgavam o forro de gesso entalhado com anjinhos azuis e estrelinhas sorridentes. As aberturas no teto que expunham nacos de céu que ali naquela porção parecia turvo, escuro, sempre de mau humor como se a qualquer instante pudesse desabar um temporal. Os petardos direcionados a fortaleza fragilizada causavam danos irreparáveis. Abriram olhos nas janelas velhas, espécie de respiradouros no teto, hematomas nas paredes.

Um dia aquela casa havia sido portentosa, deslumbrante, festiva, invejada. Jardins bem cuidados, terra a perder de vista. Chibatas, palmatórias, castigos, mortes. Risos, muitos risos por parte dos ricos donos. Havia, em culto, a ojeriza aos “porcos”, como o patriarca tratava aos vizinhos, rendeiros e empregados que maculavam a relação dos moradores da casa com seus vizinhos. Pobres... paupérrimos... humildes, sem muito de seu sofreram por eras dos maus tratos do coronel.

O tempo a destruiu, suprimiu-lhe o brilho, fragilizou-a. A ruína começara com uma festa. Festa grande, de fantasia, imitação de corte francesa em tempos de Luis XIV. Frufru esnobe para o coroamento do rei menino, senhor da casa-grande, regente do verão vindouro. Os nobres da vizinhança foram todos convidados; os pobres abriram suas pupilas gastas para, e tão somente, assistir ao desfile de celebridades.

Qualquer reizinho que se preze tem que mostrar sua face real e para isso foi preparado um ritual bufo, carnavalesco. Um menininho mirrado, selecionado a dedo, da vizinhança seria o “cavalo” do rei por uma noite. Treinou por dias o script que previa transporte do rei e uma sessão privada de humilhação do amestrado “cavalo”. À hora da embriaguez, quando a mente dos convivas já vacilava, aquela em que todo o espírito de humanidade dá lugar à barbárie, o espetáculo começou.

O reizinho adentra a arena montado no seu corcéu. O menininho quase da mesma idade fantasiado de cavalo se vergava dolorosamente ao peso do menino nutrido. Ouviu-se a voz do patriarca: “Filho, mostre pra nós a sua força! Seja digno da realeza! Mostre-nos como um monarca deve tratar os animais que lhe servem!”.

O rei mimado apeou do “cavalo”, ergueu-se majestosamente e sem pensar em nada desferiu potente pontapé nas canelas finas do seu animal domado. O “cavalo” sustentou as lágrimas, estava tomado pelo papel, adestrado. Pediu entrementes, baixinho: “Não faça a segunda parte! Não bata...!”

Aquele pedido patético soou como uma provocação aos ouvidos do rei infante. E foi com força que ele desferiu dois tapas fenomenais, uma em cada face do cavalo renitente. E obteve uma resposta que o marcaria. “Hás de pagar!! Hás de ruir como toda essa casa, rei! O sol também enfrenta eclipses!”

Foi uma das últimas festas. Veio com o tempo a decadência. A falência. Os loteamentos as hipotecas, as mortes dos gênios financeiros da famiglia. O reizinho torrou dinheiro; mimado, bon vivant, viajou o mundo, conheceu outros reinos reais de Europa, conviveu com celebridades do mundo todo. Não dava conta dos gastos. Era marcado pela luz do sol, ungido, acreditava. Um dia voltou... para ser o rei, o novo patriarca, o sucessor.

Quando vieram as primeiras crises, foi acalmado. O sol nasce todos os dias e “está conosco a séculos”, ensinava o patriarca. “Há uma crise, coisa pequena, tudo voltará ao normal como sempre!” “Não te preocupes por hora! Hás de me substituir; tua força, teu brilho te farão dono dessa casa para sempre. Está escrito”. E estava inscrito, mas não as prédicas do coronel, e, sim, numa praga instintiva de um menino paupérrimo, fantasiado de cavalo, coadjuvante do espetáculo megalômano de coroação do rei do sol.

Sob as ruínas, macilento e andrajoso o homem arrastava-se. No velho trono, mal acomodado sob um dossel destroçado, gania qual um cão sarnento e atirava olhares inexpressivos ao horizonte próximo e vazio. Haviam sombras. Eternas, agora. O sol não veio. Não viria. O reinado apagou-se. Sobrou na mansarda um derradeiro morador. Dia a dia, de sombra a sombra, lentamente homem e casa viravam a mesma pútrida carne.

por Edson de França