Um dos mais típicos sinais de determinação do envelhecimento é o volume acumulado nas gavetas de casa ou nos escaninhos da repartição que nos vampiriza. Quando o infeliz olha para um deles e lá encontra objetos com idade superior a três anos não é sinal de que a velhice bate a porta. Ela já mora. Já ocupa espaços consideráveis e ameaça espalhar miasmas por toda a casa. Definitivamente instalada, dona, dá ordens e, sadicamente, sinaliza o escoar do tempo.
Aqueles objetos – uns guardados por zelo; a maioria, por pura displicência - se acumulam como células mortas na carcaça decadente do individuo.
Uma velha embarcação, cansada de singrar mares, leva consigo memórias das águas cruzadas e dos portos de visita grudados em seu casco. São os souvenires da passagem. Os monumentos da existência. Inglórios resquícios do tanto navegar, em forma de calosidade de ostras parasitárias. Eles serviriam para recontar viagens, mas tão somente denunciam o passar dos anos. O apelo inexorável da idade. Nelas as alegrias e as dores, os mares revoltos, a calmaria, encravados como segunda pele, tatuagem crespa, nas partes submersas da nave.
As gavetas são os nossos bojos submersos. As células, naturalmente, jazem inúteis sobre nossa pele. Os órgãos (fígado, coração e pernas) acusam a idade e a cobrança dos exageros juvenis em dores pontiagudas. As gavetas, como extensões físicas de nossas afetividades mundanas, servem tanto para o acúmulo de coisas úteis como de lembrancinhas dispensáveis.
Nelas lançamos, sem muita ordem, os documentos inúteis, as correspondências não lidas, as canetas-brinde e os brindes diversos, objetos de aço enferrujado, cortadores de unhas cegos, os cheques devolvidos, chaves de deus sabe lá que fechaduras, relógios paralisados numa hora morta, pilhas, baterias, pecinhas desgarradas de objetos não identificáveis, aquele panfleto evangélico-apocalíptico nos lembrando da falibilidade do mundo e de nosotros, a anotação para o poema natimorto, o rascunho do conto cujo personagem se perdeu nas brumas da falta de inspiração, os cartões bancários recebidos e jamais desbloqueados, uns números de telefone avessos e não identificados, bilhetinhos, propostas mirabolantes para assinatura do Readers Digest, reprografias de São Jorge, Santo Expedito e Padim Ciço, mosquitinhos de mães-de-santo diversas prometendo a volta do amor perdido, calendários de anos há tempos findos, tocos de vela para a iminência do blecaute, notas fiscais, raspadinhas azunhadas, volantes de loterias pule de jogo do bicho, cartelas de bingos, listas de compra, cartões de aniversários, nascimentos, óbitos, saudações do dia do amigo, lembrancinhas de casamento, de batizado, de primeira comunhão, de crisma, de barmitzva, de troca de faixa de capoeira... santinhos daquele candidato em quem votamos e nos arrependemos. Amiúde, baratas bisonhas e traças oportunistas.
Somos naus, errantes por teimosia, em mares de humor inconstante. Os cacarecos acumulados, como nas naus marítimas, são nossos restos de ostras e microbúzios dos mares por onde nos aventuramos. Na maioria das vezes, porém, são lembrancinhas desimportantes do charco em que nos afundamos. Do mar cotidiano que singramos como rotina, vício, indeterminação. Resignação, sobrevivência...
As gavetas podem passar por extensões naturais da memória se vez por outra assomarem peraltas à soleira da afetividade, brincarem com sensibilidades latentes. Se comportando como visitas benfazejas, revisitas da alegria, como projeções vivazes e ancoradouros imediatos de momentos felizes e boas lembranças. Mas, nem sempre é assim. As gavetas se comportam como túmulos, tumbas com o mínimo de ostentação, dessas coisas comezinhas que se agarram a nós como desimportâncias parasitárias, determinadas pela sua própria natureza passageira.
Pode ser que existam gavetas ricas. Pode ser. Ricas de vida em forma de memórias, afetividades redivivas, valores diversos. Mesmo assim, apenas como exercício, é preciso escancará-las, expor-lhes as entranhas, revisar o conteúdo, expulsar os parasitas, reavaliar importâncias e, mesmo entre a vontade e a dúvida, descartar objetos. Lançá-los ao longe ou dar uso corrente aos velhos bibelôs de brinde. Rasgar papéis... reencontrar o personagem do conto suspenso. Quem sabe por sangue em suas veias para que ele, uma vez nau, viaje outros mundos e construa suas próprias lembranças. Quem sabe, apor novo sentido ao poema natimorto, recriar os universos ocultos presos a teia das palavras imprecisas.
É preciso, vez ou outra, agir como as velhas naus: permitir a raspagem da crosta de algas e musgos, se livrar das caspas que denunciam a idade. Não conseguimos tão naturalmente, sacolejar como os cachorros para contrariar pulgas e carrapatos. Então nos resta agirmos como as naus para nos livrarmos dos objetos inutilmente acumulados que só servem para denunciar nossa decrepitude.
Abramos as gavetas, reviremos os escaninhos, despejemos fora seus conteúdos. No mínimo estaremos nos livrando das fantasmagorias que silenciosamente por ali se infiltram.