Os ditadores alimentam paixões gris. Parece-nos, em primeiro plano, que o mundo imaginado por eles é cinza no calor dos corpos e no pulsar das idéias. Assim todo amor que eles possam nutrir pelas gentes que tiranizam é ritualístico como uma solene marcha marcial, composta por boas, obedientes e inexpressivas crianças. Já a explosão da alegria legítima, se por acaso há, é marcada por um dobrado bajulativo e démodé, executado num dia pátrio e festivo de culto ao déspota de plantão.
Todo projeto ditatorial tem por base a instituição da censura. O ato, mais que a própria palavra, faz parte do vocabulário ® estrito dos artífices das ditaduras. Compõe parte das estratégias restritivas da criação artística, do pensamento e da informação jornalística. A estrutura governativa das ditaduras, portanto, não prescinde de uma estrutura burocrática e de parda significância intelectual para vigiar e punir a eclosão dos “maus pensamentos”. Ou seja, coibir idéia ou atitude que sugira desestabilizar o status de pensamento médio aceitável por aqueles vetustos seres fãs da ordem e da disciplina, mantida a ferro e fogo.
Em dois momentos, ao longo do século XX, o país das bananas e parangolés sofreu estados de censura. Um primeiro patrocinado pelo Estado Novo de Getulio, e um outro durante o movimento militarista apelidado de Revolução de 64 (que para nós, seguindo uma tendência de análise mais crítica, resolvemos simplesmente classificar como Golpe). Os dois tiveram por pano de fundo rebuliços internacionais que marcavam a conjuntura cada época, especificamente. Com Getulio, a II Grande Guerra marca sobretudo um estágio de desesperança e eclosão de ideologias arrevesadas, vividos por toda humanidade.
Com o Golpe de 64, dois eventos: mais uma Guerra – Vietnã - e um elemento novo e intrigante: um movimento planetário de essência jovial e provocativa. Quem nos dá noticia desse movimento é Fred Góes, na Literatura Comentada de Gilberto Gil: “de roupas coloridas, cabelos longos, cultivando a terra e usando tóxicos para aprofundar o auto-conhecimento, os hippies recusam qualquer padrão institucional adulto”. Pois é, esses malucos de cabelos encaracolados e mentes maravilhosas entravam em cena sem pedir licença com um discurso pacifista, uma musicalidade que unia a ancestralidade a rebeldia e uma forma de vida alternativa determinada criticar os padrões da sociedade.
Ironicamente, nossa “revolução” interna, por mais que lhes decantem o espírito desenvolvimentista, entrava em choque direto com a revolução mundial que se desenrolava. O mundo experimentava, ao contrário de nós, revolução; esta sim muito mais significativa, uma revolução cultural no melhor sentido que a expressão possa ter para a humanidade. Revolução cultural quer sugerir descontinuidade, ruptura: inconformismo, make Love, not war, despadronização da vida. Nada, nada, nada que agrade um santo homem do senhor e das instituições cristalizadas.
A revolução cultural, porém, inspirou pelo menos dois movimentos tupiniquins. O bucólico Clube da Esquina e o carnavalesco e desbundado Tropicalismo. O primeiro muito mais marcado pela musicalidade e o outro incorporando não apenas a música, mas o espírito rebelde de uma época, o experimentalismo literário e a veia política mais exposta. Como nos reportam Paulo Franchetti e Alcir Pécora (leia-se Literatura Comentada de Caetano Veloso): “Recuperando Oswald de Andrade, valorizando a alegoria, assumindo a modernidade, eliminando a fronteira entre mau e bom gosto, entre música erudita e popular, nacional e estrangeira, o movimento tropicalista cria uma nova linguagem. Linguagem de recusa dos padrões de bom comportamento no palco, na melodia, na vida”
O corpo, o som e a as cores tropicalistas não se harmonizariam jamais com o uniforme verde-oliva, nem com o rataplã dos marcha-soldados cabeças... de que mesmo? Era inevitável o choque. Ouçamos, então, Paulo Franchetti e Alcir Pécora em obra supracitada: “os clarins da banda militar, cujos acordes dissonantes irromperam com brio em 1964, avolumaram-se com a Lei de Segurança Nacional no compasso marcial dos Atos institucionais, que culminaram no 5º”, a mais terrível criação garrastazulina. Acabaram, inclusive, com a transmissão ao vivo de programas da juventude.
Assim, prisão, exílio, censura de pensamento e atitudes não eram só medidas punitivas, eram estratégias saneadoras, artifício limitativo de quem se acostumou a viver paixões cinzentas. Paixão assim sem abraços, sem beijo na boca em meio ao passeio público. Paixão pela limitação dos movimentos de corpo, do colorido das vestes, dos pensamentos e dos acordes, considerados em bloco como exotismos perniciosos. Cá pra nós, “exageros transgressores” esses que, além de soar como representações das ousadias e traduções do espírito de uma época, fazem minimamente pensar. Fazem um homem se sentir homem, alimentam o sonho (até de um mundo melhor) e contribuem para torná-lo participativo no jogo das forças e formas que movimentam o cosmo. Em navilouca assim não há lugares para instituição da censura.
(por Edson de França)